terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Guerrilheiros do Araguaia, Doca e Joca, viveram em Rondonópolis

Revista Sina


Daniel Ribeiro Calado, o Doca, e Líbero Giancarlo Castiglia, o Joca, dois guerrilheiros que combateram a ditadura militar nas selvas do Bico do Papagaio, região entre os rios Araguaia e Tocantins, no início da década de 70, foram moradores de Rondonópolis (MT), a 220 quilômetros de Cuiabá, no Sul do Estado. Em 1986, 18 anos depois da partida deles para a Guerrilha do Araguaia, eu percorri as ruas da cidade levantando a história de Doca e Joça, como eram conhecidos os dois revolucionários. Foi a pedido de Elza Monerat, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), hoje falecida. Na época ela era responsável pela organização dos arquivos da guerrilha e queria saber como foi a vivência deles em Rondonópolis. No final do ano passado, exatamente 22 anos depois da primeira pesquisa e 40 após Doca e Joca seguirem rumo ao Araguaia, eu estive novamente na cidade para reencontrar os antigos companheiros dos dois guerrilheiros. Da primeira vez havia conversado com pelo menos duas dezenas de pessoas. Eram colegas de profissão ou de futebol de Daniel e Líbero. Eles eram lanterneiros e assim que chegaram a Rondonópolis – entre 1966 ou 1967, ninguém soube precisar – montaram uma oficina. Ficava na rua Dom Pedro II, em frente à praça dos Carreiros, ao lado do antigo Hotel Goiano. Na época era quase periferia da cidade, mas hoje o lugar faz parte da movimentada área central e não há sinal de mais nada, nem da oficina nem do hotel. No espaço onde os dois comunistas trabalhavam tem uma loja de produtos agropecuários. Ali eles conheceram e fizeram amizades com outros lanterneiros, torneiros e mecânicos e profissionais de vários segmentos, desde funcionários públicos até empresários e políticos. Todos freqüentavam o campo de várzea próximo da praça dos Carreiros, onde também aconteciam disputas do competitivo Campeonato Rondonopolitano de Futebol, com direito a troféus, medalhas, faixas, rainhas e princesas. Antes das partidas, as equipes desfilavam seus jogadores com mascotes, bandeiras, flâmulas e madrinhas. Nos domingos, milhares de pessoas cercavam o campo para torcer pelos times. Nos dias de decisão do campeonato, Rondonópolis era toda festa. Clandestinos Foi neste ambiente que Doca e Joca se integraram à cidade. Não participavam da vida política, nem falavam sobre a política local e muito menos nacional. Não tinham militância sindical e nem comunitária. A condição de clandestinos não permitia nenhuma exposição que levantasse suspeitas. A tarefa era chegar ao Araguaia. Para a população eram apenas dois lanterneiros, ali ganhando a vida e se divertido nos domingos de futebol, nas pescarias nos rios Vermelho e Arareau e nas rodas de batidinha no Bar do Dário, um dos pioneiros da cidade emancipada 13 anos antes. Ninguém desconfiava que Rondonópolis servia apenas como um breve refúgio para os dois operários que tiveram forte atuação no movimento sindical e no PCdoB, no Rio de Janeiro. Por este motivo estavam sendo perseguidos pela ditadura militar. Eram visados e não podiam seguir direto para a região da guerrilha sem que despertassem a desconfiança da polícia política e das Forças Armadas. A permanência na cidade também servia para avaliar a região e sentir o clima político local, enquanto aguardavam a senha para rumarem para a guerrilha. O Doca, Daniel Callado, era o mais conhecido. E a razão era a sua popularidade como o grande craque do Batidinha Futebol Clube, o time no qual ele começou a jogar logo que chegou a Rondonópolis e passou, junto com Joca, a freqüentar o Bar do Dário. Não bastasse a admiração por seu futebol arte, Doca ainda arrancava muitos suspiros da moças da cidade com sua pinta de galã. Joca era admirado por sua cordialidade e presença sempre marcante nas rodas de conversa e na torcida nos jogos do inseparável amigo, irmão, camarada. Impressionava pela alva e o pé enorme. Os dois eram muito respeitados pelo profissionalismo, eficiência na execução dos serviços de lanternagem e pela solidariedade com os colegas e amigos. Pinga com limão No levantamento de 22 anos antes, quando encontrei mais de 20 amigos e colegas de Doca e Joca, não revelei para todos exatamente o motivo da apuração. O País acabava de entrar na redemocratização, saindo de uma ditadura de 21 anos, e temia inibir minhas fontes. No final do ano passado, quando retornei, reencontrei apenas Hermogenes Ramos Siqueira, mais conhecido por Tinô. Os demais estavam aposentados, mudaram da cidade ou faleceram. Tinô foi uma das primeiras pessoas que conheceram Doca e Joca e era um dos que mais admiração nutria por eles. Mecânico e lanterneiro, proprietário de uma oficina na Vila Aurora, bairro do outro lado rio Arareau, Tinô também era jogador do Batidinha Futebol Clube. “Eles chegaram aqui e fizeram amizade com todos nós. Disseram que eram lanterneiros e que queriam se estabelecer na cidade. Nós os ajudamos a montar uma oficina”, relembrou ele à época do primeiro contato. 'Aí o Doca – prossegue Tinô – começou a participar dos treinos do Batidinha. De cara ele entrou para o time. Era um excelente jogador. Os dois se entrosaram logo com a turma. Mas o Joca não jogava bola, só o Doca. Eram dois caras muito legais. A qualquer hora que a gente precisasse os dois estavam dispostos a ajudar. Até que um dia eles sumiram”. O time do Batidinha Futebol Clube foi fundado em 1965. Era um grupo de comerciantes, funcionários públicos e operários que se reunia para bater uma "bolinha" todos os finais de semana. Certo dia, reunidos no Bar do Dário, resolveram batizar o time. Como a turma toda gostava de tomar batida de pinga com limão, o Dário sugeriu o nome de 'Batidinha'. E pegou. A equipe foi registrada na Liga Esportiva de Rondonópolis: 'Batidinha Futebol Clube'. Fã número um Batidinha fez fama. Em menos de um ano de formado já era dos mais populares da cidade, competindo nessa faixa com o Olaria, Santos e Rodoviário. Este último formado por operários do DNER local. A fama correu o mundo. Batidinha 'papava' todos os campeonatos na região. Jogar nele era uma grande honra para qualquer um. A equipe tinha uma grande torcida, bandeira e até rainha. Foi por essa época que chegaram o Doca e o Joca. Da amizade com Tinô surgiu o conhecimento da 'turma'. 'Foi no bar Dário', busca na memória o lanterneiro. Doca e Joca conheceram o Silvão, Fernandinho, Bento, Alcio, o Pretinho, o Tonho Baiano...E é aí que teve início àquilo que foi chamado de 'o quarteto invencível'. Doca, Silvão, Tinô e Fernandinho. Silvão, zagueiro; Tinô, lateral esquerdo; Doca, lateral direito; Fernandinho, central. Eram, os quatro, os responsáveis pelas sucessivas vitórias do Batidinha. Quando o entrevistei em 1986, Silvão se lembrou com paixão daquela época: 'Doca era um jogador excelente. Jogava de lateral direito, zagueiro, meio campo, de tudo. Era um craque como ninguém. Meu tio era um grande admirador dele. O Joca era só torcedor: um branquelão grande, calçava 44. O sapado dele só vivia furado pela unha do dedão.' O senhor Henrique Nunes da Silva, então com 64 anos, comerciante, tio de Silvão, era um grande torcedor do Batidinha e admirador do Doca. 'Um fã número um do Doca', como ele mesmo de descreveu. “O Doca era uma coisa inexplicável. Ele surgiu no time não sei como. Nunca fiquei sabendo de onde ele veio nem pra onde foi. Me lembro que gostava muito de pegar no pé dele por causa do Fluminense, time do seu coração.” Lágrimas Reencontrei Tinô no final da manhã de um domingo de muito calor e ressaca eleitoral. Menos de um mês antes a cidade viveu uma das disputas mais ferrenhas das eleições municipais de 2008 em Mato Grosso. O deputado José Carlos Junqueira Araújo, o Zé do Pátio (PMDB), e o então prefeito Adilton Sachetti (PR) protagonizaram uma verdadeira guerra política, que ultrapassou a disputa por votos, se engalfinhando num emaranhado de denúncias de compra de votos e outras irregularidades e “trocas de chumbo” que transcorreram até às margens da posse do eleito. Era visível a atmosfera bélica que o pleito gerou e que nem mesmo três semanas conseguiu dissipar. Enquanto aguardava Tinô dirigir uma partida do “Baba”, no campo do Vila Aurora Esporte Clube, eu conversava com os torcedores. Alguns correligionários de um lado e de outro, exaltados, chegaram a trocar agressões. Os partidários de Sachetti não se conformavam com a derrota e os eleitores de Zé do Pátio comemoravam de forma acintosa, segundo os primeiros. Acabada da partida do “Baba” e depois de contornada uma briga na qual voou até garrafas de cerveja quebrada, abordei Tinô. A mesma simpatia, o mesmo coração bondoso de 22 anos antes. O corpo ainda tinha um pouco da agilidade dos 49 anos, mas os cabelos brancos, as rugas profundas e os olhos cansados, apesar de vivos, denunciavam os 71 anos. Buscou um pouco na memória para lembrar do dia que conversamos mais de duas décadas atrás. Após um breve silêncio, respondeu: “Ah, sim, foi sobre o Doca e o Joca, né? Quanta saudade... Cadê eles, você tem notícias?” Morreram, contei. Os olhos dele encheram de lágrimas. “De quê?” Combatendo o regime militar na Guerrilha do Araguaia, respondi, explicando o que foi o movimento armado. “Mas porque, o que eles foram fazer lá? Estavam tão bem aqui”, exclamou. “Os caras eram muito bons”, acrescentou. Quis saber onde encontraria os outros companheiros do Batidinha. Ele disse que seria um pouco difícil, porque muitos já haviam morrido e outros nem mais moravam na cidade, estavam doentes e aposentados. “Mas de vez em quando aparece algum por aqui, para ver a garotada jogar”, contou. Tinô nunca deixou de mexer com futebol. Também mantém ainda hoje a oficina funcionando no mesmo lugar, pelo menos há 50 anos, faço as contas. No Vila Aurora Futebol Clube ele é responsável pelo treinamento das equipes de base, as quais chama carinhosamente de “Baba”, “Babinha” e “Babíssima”. Todos os domingos de manhã lá está ele dando orientações na preparação físicas dos jogadores e táticas de jogo e dirigindo o coletivo, que é muito concorrido. Após o jogo puxamos duas cadeiras do bar e sentamos na beira do campo, perto do vestiário, para a entrevista. E enquanto ele falava eu dividia a atenção ao seu semblante e depoimento com os meus pensamentos percorrendo aqueles anos distantes e imaginando que os camaradas Doca e Joca nunca deveriam supor que por onde eles passaram deixaram muito carinho e saudade. Dois desaparecidos políticos Doca e Joca são considerados dois desaparecidos políticos. É certo que eles morreram assassinados no Araguaia pelo Exército brasileiro, mas como seus corpos ainda não foram localizados e identificados, tecnicamente são desaparecidos. A história deles e de outras seis dezenas de guerrilheiros mortos no confronto com os militares no Araguaia ainda é desencontrada quase 35 anos depois do fim da guerrilha. Os arquivos das Forças Armadas ainda não foram totalmente abertos para revelar o que fizeram no Bico do Papagaio. Líbero Giancarlo Castiglia é considerado o único estrangeiro na Guerrilha do Araguaia. Ele nasceu em San Lúcido, Cozenza , na Itália, em 4 de julho de 1944. Trabalhava como operário metalúrgico no Rio de Janeiro. No Araguaia estabeleceu-se como comerciante na localidade de Faveira, em São João do Araguaia, Pará. Texto do “Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964”, está desaparecido desde o dia 25 de dezembro de 1973, quando estava no acampamento que foi bombardeado. Daniel Ribeiro Callado nasceu em São Gonçalo, Rio de Janeiro, no dia 16 de outubro de 1940. Também era operário em seu estado natal. Relatos indicam que foi morto em setembro de 1974, depois de preso e torturado na base do Exército em Xambioá, hoje Tocantins.